todos os fatos, novidades e destemperamentos que eu queria comentar com mais de 5 pessoas mas tive preguiça de ligar.

19.8.10

boa noite


o frio na barriga passou pra perna, e de repente era o pé que estava gelado.
a mão buscava o cobertor, que se enrolava no corpo e tentava, mas não conseguia.
a perna teimosa encostava na parede, e gelada, trazia notícias do mundo exterior:
continuava noite, continuava inverno.
o frio na cabeça descia pela goela, com goles de saliva e chá, e chegava de escorregador na barriga.
o olho abre, fecha, fecha mais forte, abre e coça.
o pensamento vai ali, volta, se enrola no cobertor e no cabelo, e escorrega pra outro lugar feito sabonete molhado.
o colchão faz barulho, a respiração fala, barulho de relógio, do caminhão de lixo.
longe, longe..
a insônia.

9.8.10

gaveteiro

Todo mundo já ouviu uma aula sobre memória ou concentração que começa com a comparação besta da mente com um gaveteiro. Separam-se as gavetas por assuntos, pela facilidade de acesso, pela relevância, ou qualquer outra categoria que pareça pertinente, numa tentativa de fazer uma arquivologia mental.

Pois que tenho achado meu armário uma representação bastante fidedigna da minha cabeça. Qualquer coisa em qualquer gaveta, peças fora, peças dentro, peças no chão, sem qualquer consideração organizativa ou cronológica. A regra é fechar a porta e não deixar escapar nenhum braço de camisa, que tudo bem, estamos funcionando.

As gavetas têm tamanhos diferentes, e são organizadas por cores.
Mas tem sonho que parece que aconteceu, tem gente que some, tem nome que vira outro, tem letra que se confunde e tem prioridades que se ultrapassam sozinhas.

Os cabides estão em ton sur ton.
Mas tem evento que parece que não fui, tem critério que se transforma, tem frase que fica, tem cheiro que não passa e tem pensamento que vira texto.

Sem nem pensar em dobrar as peças.

6.8.10

tesourinha


Quando o piloto avisa "senhores passageiros, voltem pros seus assentos e afivelem os cintos, estamos passando por uma zona de instabilidade", aposto que todo mundo segura o braço da cadeira ou do colega do lado com força. E pensa alguma reza e "o que eu queria que tivesse comigo se o avião caísse" e enrola a alça da bolsa no braço. Eu sempre penso nos óculos, uma náufraga míope de lente não rende muito into the wild.

Os náufragos também pensaram na coisa errada.

Nadia pensou na aspirina, mas esqueceu da tesourinha.
Nadia estava muito feliz porque tinha alongado os cílios para o casamento de sua prima, em Lisboa, motivo da sua presença no avião além mar. O procedimento era caríssimo e inovadorérrimo: implantam-se fios da base da nuca nas pálpebras pra dar uma engrossada na piscada. Nádia esqueceu da tesourinha e teve que aprumar os cilios crescidos pra trás da orelha, nada agradável. "Com o tempo vai dar pra fazer uma trança" - pensou.

Antônio pensou nas sementes raríssimas de batata brava de Goiás que levava na bagagem de mão, mas esqueceu da tesourinha. Antônio ia pra Espanha plantá-las no terroir de seu cunhado. Aquela ilhota nunca comeu cozidos tão saborosos, apesar da dificuldade com a abertura dos pacotes lacrados.